sábado, março 21, 2015

Montando uma biblioteca particular


Não tenho o hábito de visitar casas de pessoas. Nem tinha quando era mais sociável. Casas são universos particulares e refúgios – quando chego à casa de alguém, espero encontrar mais do indivíduo ali, seu mundo, seus móveis bem escolhidos, suas cores, seus livros, sua parafernália kitsch. Acredito que boa parte do meu desprezo com as casas alheias é porque elas são muito desinteressantes e decepcionantes. Chega-se à casa de um músico, por exemplo, e tudo o que se vê são móveis entediantes e os instrumentos básicos que ele toca profissionalmente. Onde estão os discos, os CDs, as dezenas de livros sobre música? Não estão. É algo que jamais entenderei. A casa, que era para ser o melhor sítio para alguém querer estar, é, na maioria das vezes, um ambiente inóspito. Não é um lar. É só um lugar para fugir da chuva e dormir. Quando se aprende a ser feliz na solidão, quer-se qualificar a solidão. Sua casa é a sua solidão: qualifique-a. 

Lembro que na época da minha primeira tentativa de faculdade eu visitava a casa de colegas do mesmo curso ou de cursos similares. Apesar de adorar coisas e a disposição das coisas de forma pitoresca e idiossincrática, eu ia a essas casas mais para ver que livros havia lá, pois já sabia que lares interessantes como organismos vivos eram peças de filmes, e não da vida real – pelo menos não da vida real que eu vivia, com desprezadores que enxergavam um mundo decorativo binário: ou se era muito rico com requinte e móveis modernistas, ou se era simplesmente pobre e a única opção seria comprar móveis de falsa madeira na cor amarela das Casas Bahia. Meus colegas, não sendo ricos, achavam que só poderiam montar um lar com feiuras de lojas populares. Já acostumada a essa situação – e não tendo coragem de soltar o que pensava: “por que não vai à loja de móveis usados e compra umas coisas velhas que, pelo menos, têm beleza e história?” –, eu ia conhecer essas casas esperando encontrar bons livros de bons estudantes que supostamente amavam a ciência à qual decidiram dedicar suas vidas. Bem, para essa decepção eu nunca estive preparada. Como é que um estudante de História ou pretenso amante da Antropologia não possui em casa alguns livros básicos, clássicos, referenciais? Como é que um estudante não se esforça para ter uma estante especializada para colocar os livros que o acompanharão por toda a vida? Quando achei parcos valiosos livros naquelas prateleiras frias, vazias, dramáticas, eram os livros que algum orientador “forçou” o sujeito a comprar para escrever uma monografia que prestasse. Aqui, reforço algo que sempre defendi: se alguém ou algo (professor, escola, profissão, status) precisa te obrigar a ler sobre um assunto que você alega amar, adorar, é porque você não ama nem adora esse assunto. Se você não é capaz, por livre vontade e sem interesses tacanhos, de devotar seu tempo a esse tal amor, não é amor. Foi lastimável encontrar penúria nas estantes de meus colegas de Humanas, e foi mais lastimável ainda quando eu comparei esse desleixo com a fartura que encontrei, por exemplo, nas estantes de pequenas damas do artesanato. Visitei, nesta minha breve vida de poucos passeios, as casas de inúmeras mulheres (jovens e senhoras) que tinham paixão por artesanato. As prateleiras delas tinham livros, revistas, recortes, fichários, cadernos com anotações, genuínas bibliotecas particulares dos trabalhos manuais. Não há um dia em que essas apaixonadas não passem namorando suas agulhas, alisando seus algodões, buscando um novo ponto de bordado. Você não espera encontrar um universo íntimo detalhista na casa de uma senhorinha, assim como não espera encontrar estantes desguarnecidas na casa de um humanista pedante – até descobrir, claro, antes tarde do que nunca, que certos pedantismos são escancarados ao se conhecer o lar de uma pessoa. O pedante pode se entregar no cotidiano – ou sua casa pode entregá-lo. E, não, nenhum desses personagens que critico escondiam suas nobres leituras em bibliotecas virtuais repletas de e-books.

Não sei se isso é problema de país emergente, mas ter que dizer às pessoas para que leiam – para que leiam, não para que leiam isso ou aquilo – soa patético. O Brasil pode ter várias qualidades que me fazem querer morar aqui a vida inteira, mas educação e cultura da leitura não estão entre elas. Nesta nação de atores preguiçosos, livros em casa só servem para fins bem delimitados: estudar para um concurso, dar uma aula, escrever uma tese. E o mesmo pacóvio que lê inúmeros livros só para escrever uma tese vai ficar chateado se, após anos de hospedagem na biblioteca da universidade, a tese dele não tiver sido acessada nenhuma vez – e dirá: “acho incrível como as pessoas não leem nesse lugar”. Sim, porque ele não é capaz de, por livre arbítrio, ler um clássico, mas a população acadêmica deveria se interessar em ler a tese dele, um estranho que só foi se doutorar para usar o doutoramento como argumento (ou apenas eu nesse mundo presenciei inúmeros abusos de título em que alguém foi tacitamente proibido de discutir com finos de altas titulações?). A cultura da não-leitura gera tantos percalços no cotidiano que, mais uma vez, nada se torna melhor, se você é um leitor de fato, do que se afastar dos outros. Na cultura da não-leitura, o indivíduo que lê um livro a cada três meses vai se exibir, vai achar que um novo livro é como um novo sapato que precisa ser percebido por outrem, vai palestrar. Tenho um colega de trabalho que leu dois livros em quatro anos. É somente desses livros que ele fala. Quando inicia o falatório sobre esses livros, diz “esses tempos li um livro que...”, mostrando a todos que a expressão “esses tempos” é mesmo muito vaga. Conclusão deste parágrafo: sobre livros e títulos, quem mais se exibe é o que mais insegurança tem. Precisar afirmar em demasia alguma coisa sobre si denota complexo de inferioridade. E não é por acaso que as pessoas mais arrogantes sejam as mais complexadas. Não interessa o que alguém diz sobre si, mas o que alguém faz com o que possui em si. Toda vez que vejo uma figura muito "exibida", penso que ela já foi uma criança. Hoje, adulta, vive para implorar atenção – “vejam como sou incrível!”, “por favor, vejam os cursos que fiz, vejam como estudei!”, “percebam quão peculiar eu sou!” –, e eu me questiono como teria sido quando criança. Melhor ou pior? Crianças estão sempre clamando atenção, reféns de suas carências explicáveis, mostrando a todos suas meias novas e dizendo que sempre vão a parques sensacionais. Crianças. Mas como lidar com adultos que não cresceram e ainda agem como se dependessem sempre da aprovação alheia e medem a própria felicidade de acordo com a reação que os outros têm sobre suas vidas? A ojeriza não vai embora, mas se mistura a um pouco de misericórdia quando percebemos que aquela pulga humana que não cala a boca e se sente tão necessitada de afeto já foi uma criança. Até um chefe esdrúxulo será melhor aturado se você pensar que há não tantos anos ele era uma miniatura. Exibidos precisam se exibir para sobreviver. Fuja deles, e, se não conseguir isso sempre, pense neles como crianças beiçudas que não amadureceram. 

Retomando após tantos devaneios: é preciso que todos tenhamos uma biblioteca particular que seja uma fonte do conhecimento que nos é atraente. A biblioteca permite releituras, organização das ideias. Você se recordará de uma descrição pessimista de Henry Miller sobre o mundo e reviverá aquilo em minutos: o livro está na sua estante. Em menos de um quarto de minuto achei o trecho que precisava de Trópico de capricórnio, coisa que seria impossível se eu não tivesse minha biblioteca pessoal: “Todos ao meu redor eram fracassados e, se não fracassados, ridículos. Especialmente os que haviam 'vencido'. Estes me faziam chorar de enfado”. (Muitos elegem Trópico de câncer como o melhor livro dele, mas eu discordo.) É impossível que um livro bom não dê vontade ao leitor de lê-lo de novo, pelo menos alguns trechos. Um livro valioso não é apenas lido como um panfleto de rua: ele é estudado, destrinchado, analisado com paixão e técnica. Quando alguém chega à biblioteca onde trabalho e doa um livro dizendo que ele é maravilhoso, sempre me pergunto: “por que está doando, então?” Ou essa pessoa tem uma cópia, ou o livro não é tão maravilhoso. Às vezes descubro que o “livro maravilhoso” foi doado porque o doador precisava de mais espaço em casa. Cada um com os critérios de avaliação do seu planeta, mas do planeta onde eu venho as coisas consideradas maravilhosas ficam conosco em vez de serem tidas como entulho que deve ir embora para dar lugar a uma televisão maior. Uma biblioteca particular – que pode ter tamanhos variadíssimos, dependendo dos assuntos de interesse e da quantidade de material publicado sobre eles (seu dono gosta de história de modo geral ou gosta de história das mulheres no Brasil Imperial?) – é uma prioridade. Eu não me imagino numa casa sem cama, assim como não me imagino numa casa sem uma pequena biblioteca.

Para montar uma biblioteca particular são necessárias duas coisas: um plano de leitura e um plano de compra. O plano de leitura deve ser feito pensando nos assuntos que te interessam. Nesse ponto, é salutar ponderar se o assunto escolhido é interessante apenas como uma curiosidade efêmera ou se você realmente está disposto a gastar tempo para dominá-lo à sua maneira. Livros podem ser belos objetos decorativos, mas decorar não é sua finalidade primeva, portanto não vale a pena adquirir livros sobre assuntos que não te satisfazem de verdade. “Sim, estou disposto a gastar meu tempo com este tema”. Já temos, aí, um início para um plano de leitura. Depois de definir os assuntos, que podem ser três ou dez e ficar espiralados, é preciso saber o que há sobre eles disponível. Se é algo para o qual você não terá a ajuda de um professor que já vem com o pacote de apostilas prontas e todos os infográficos perfeitos, uma leitura mais rasa no começo será melhor para não cair em ciladas em que facilmente os autodidatas caem. O autodidatismo é um brinco de ouro quando bem realizado, mas pode se tornar tão asqueroso quanto um montinho de cabelo escuro no ralo quando levado da forma errada. Há autodidatas que aprenderam a aprender e aprenderam a buscar o que é bom. E há autodidatas que leem qualquer coisa, sem critério, sem seleção, sem ver diferença entre Jorge Luis Borges e Paulo Coelho (acham que porque este se diz influenciado por aquele existe entre eles alguma conexão), sem saber que não se compra nem se lê (exceto se for para criticar) livro de editora ruim. Como saber o que ler sobre seu assunto querido se não há uma referência que abone ou desabone títulos? Usando os próprios livros como referência e lendo artigos na internet. Talvez você seja um aprendiz de leitor de História e não saiba muito bem quais historiadores deve ler. Compre livros sobre movimentos importantes dentro da História (livros sobre a Escola dos Annales, por exemplo) e lá você verá inúmeros nomes de historiadores graúdos que merecem leitura pelo excelente trabalho que fizeram. Compre livros gerais de boas editoras e esses livros quase enciclopédicos darão inúmeras dicas implícitas de “por onde começar”. Fazendo um plano de leitura, vale a pena visitar bibliotecas públicas, jogar o nome do assunto em livrarias virtuais (além de livros com aquele termo, essas lojas costumam fazer recomendações do tipo “quem comprou este livro também levou aquele outro”, que podem ajudar a conhecer mais obras que se tornarão possíveis leituras), ler resenhas na internet. Tendo o plano de leitura encaminhado – é bom lembrar que esses planos são sempre refeitos porque uns assuntos levam a outros –, já é possível estabelecer um plano de compra.

O plano de compra consiste em adequar seu orçamento pessoal à sua vontade de adquirir livros e organizar essas finanças específicas. O mito de que livros são caros precisa ser destruído. Chamar o ato de ler de um ato elitista porque “livros são caros” poderia fazer algum sentido se proferido por engenheiros e médicos, cujos livros custam mais de trezentos reais, mas acho que nem esses estudantes e profissionais reclamam tanto do valor dos livros quanto o leitor médio de Humanas e literatura. Literatura é quase uma piada de tão barata hoje em dia. Há centenas de clássicos popularizados em livros de bolso, e a versão é muito elogiável – bons tradutores trabalham para a L&PM Pocket, para a Companhia de Bolso e para a parceria Companhia & Penguin. Nessa seara, nenhuma desculpa será perdoada. Talvez alguns livros sejam mais caros (a coleção d'A Comédia Humana pela Biblioteca Azul, os livros de ficção da Cosac), mas basta que o comprador se organize financeiramente para adquiri-los. Suponho estar falando, aqui, com um leitor-comprador de poucos recursos, pois é claro que muitas pessoas podem comprar os livros que desejam no momento que desejam. E é para esse leitor pobre que continuarei falando, até porque é para ele que o plano de compra faz sentido (um leitor rico precisa planejar apenas suas leituras, e não suas aquisições). O leitor de poucos recursos precisa pesquisar. 

Com o plano de leitura em mãos, é hora de pesquisar o valor dos livros. Você pode anotar ao lado de cada livro o valor mais barato que encontrou e onde o livro estava por aquele valor. Dependendo do orçamento mensal destinado a qualificar sua biblioteca particular, é possível comprar alguns livros por mês. Digamos que você consiga destinar apenas 60 reais por mês para comprar livros. E gostaria de comprar aquele livro do Jung pela editora Vozes que custa 80. Você pode aguardar mais um mês para tê-lo ou pode abrir mão de alguma trivialidade que libere 20 reais para completar a compra se a vontade de ter o livro for uma emergência. Com um orçamento baixo, eu recomendo, se possível, que espere algum tempo para poder efetuar uma compra maior. Tenho no meu e-mail uma pasta chamada “COMÉRCIO”, onde estão listadas uma porção de coisas que preciso comprar, principalmente livros. Quando um livro me interessa, escrevo um e-mail para mim mesma e depois o movo para essa pasta. A lista vai aumentando, mas o meu anseio pode esperar, já que eu tenho em casa muitos livros não lidos e muitos livros que precisam ser relidos. E o anseio espera até que alguma livraria virtual apresente promoções. Não é raro que essas livrarias façam promoções do tipo “12% de desconto no boleto” e/ou “frete grátis nas compras acima de 199 reais” (não mais tão comum hoje em dia, há também a promoção do desconto progressivo: quanto mais você compra, mais desconto consegue, sendo acima de quatro livros um grande desconto fixo, geralmente de 20%), então sempre vale a pena esperar para comprar certos livros nesses casos, principalmente livros não tão badalados que estão sempre pelo mesmo preço e só sairão mais barato com esse tipo de desconto dado no valor total do carrinho. Em quatro meses, o personagem hipotético do orçamento de 60 reais terá guardado 240 reais. É possível fazer uma bela compra com esse valor, principalmente considerando que as lojas costumam dar frete grátis para um valor como esse. 240 reais não é muito dinheiro, mas permite a compra de nobres livros – o que faz desmoronar a teoria do derrotista indolente sobre livros serem caros. Livros que hoje eu poderia comprar com esses 240 reais: 

Compreender Schopenhauer, Jean Lefranc 30 reais
Aleijadinho e o aeroplano, Guiomar de Grammont 30 reais
Gilberto Freyre, um vitoriano dos trópicos, Maria Pallares-Burke 50 reais
Freud – mas por que tanto ódio?, Elisabeth Roudinesco 22 reais
O brilho do bronze, um diário, Bóris Fausto 36 reais
Anna Kariênina, Tolstói 51 reais
As aventuras de Pinóquio, história de um boneco, Carlo Collodi 20 reais

Sete livros aparentemente bons, de excelentes editoras (Vozes, Cosac, Civilização Brasileira, Zahar, Unesp) e que custaram 239 reais. Tem gente que gasta esse valor num dia indo à praia (pelo histórico de postagens, imagino que eu pareça ter birra de praia, mas na verdade é só uma perseguição à cultura estranha da praia que impera aqui em Santa Catarina) e depois vai dizer que não lê porque livros são caros. Tem gente que compra esses livros sem reclamar, enriquece o espírito e vai montando aos poucos uma biblioteca particular que é um tesouro muito personalizado. 

Uma maneira de pensar se sua casa ou sua biblioteca particular são uma representação de você é imaginar alguém que te conheça muito e um dia chega à sua casa, sem saber que é a sua casa e sem você lá. E essa pessoa é questionada: “de quem você suspeita que seja esta casa?” Você gosta de jardinagem e haverá livros sobre o assunto nas prateleiras; você se interessa pela ética que considera animais e haverá livros de Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione e Sônia T. Felipe todos juntos numa seção; há dezenas de livros de literatura africana porque você está realizando um estudo pessoal sobre os diferentes tipos de histórias fictícias criadas no continente; e há, ali, alguns livros e dicionários de francês. Uma pessoa que conhece o patchwork de interesses que te transforma numa peça única saberá que aquela estante só pode ser sua. Essa é uma biblioteca rica e especializada que faz sentido. Monte um refúgio que faça sentido. 

Como procuro dar conselhos que já sigo, não será nenhuma novidade se eu disser que meu quarto é uma extensão de mim. Transformei-o em um lar, em um espaço que me abraça toda vez que eu entro e diz: “bem-vinda de volta, aqui você estará bem”. E realmente estou. É aqui que está meu universo importante, é aqui que eu coloco o que é valioso para mim. Transformar este espaço em aconchego significa dar ainda mais vontade de que eu volte a ele. Será que muitas pessoas odeiam ficar em casa justamente porque suas casas não representam nada e não possuem atrativos para o corpo e a mente? Talvez. Mas esse pode ser um problema mais interior do que o interior da própria casa: de nada adianta uma morada fabulosa se você não consegue se fazer fabuloso dentro dela porque odeia a si mesmo. Uma biblioteca particular gigantesca e belíssima não resolverá o problema de quem não suporta a ausência de movimento mundano e montou uma biblioteca só por colecionismo. Um livro bom não servirá para nada sob as lentes erradas. Da mesma forma, o meu mau julgamento talvez não mereça alcançar todas as pessoas que possuem casas tristes e bibliotecas acabadas, pois talvez sejam leitoras até bem-intencionadas, mas que não pararam para refletir que ler um livro por mês de uma biblioteca pública não basta para se sentir a plenitude de uma relação íntima com o conhecimento que vem dos livros. Não é nenhum sacrifício fazer de sua casa um lar onde você queira sempre estar. Só digo isso porque testo o quanto um lar muito particular faz bem à minha vida, à minha lucidez. Nossas mentes e nossos lares são lugares que não podemos deixar corromper.